domingo, 2 de maio de 2010

A peça “Maçã caramelada”, de André Rezende, é um convite para que façamos do passado uma criação dinâmica no presente e uma reatualização no futuro. Maria Bitarello - (13/03/2009)
Se pensarmos a velhice como a constante presença do passado, e a infância como a estrita projeção do futuro, a vida deve ser o que acontece no meio, entre estas duas esperas; uma perda dos sonhos e um acúmulo sempre progressivo de memórias. O poeta mineiro, Murilo Mendes, tem uma frase em que diz que “a memória é uma construção do futuro, mais que do passado”, e a considero bastante pertinente se aplicada à leitura da peça de André Resende, Maçã caramelada, publicada pela Editora Cubzac (em uma edição digna de ser adquirida).
No texto – curto e pontual –, Eusébio, Greta e Adílio fazem de um encontro, ao acaso, em uma antiga emissora de TV, uma reconstrução do passado e uma recriação para o futuro. A partir do acervo da emissora, que está prestes a se perder, estes três personagens paradigmáticos pensam, conversam a respeito e nos fazem pensar – nós, os leitores – sobre a persistência da memória, o legado a que damos continuidade e que seguirá quando já não mais aqui estivermos, o mal-estar provocado por nossas escolhas e consequentes renúncias que implicam e o papel que o acaso, que a coincidência, tem em nossos encontros e trombadas entre a infância e a velhice, inclusive (e sobretudo) este que ocorre entre os três e que conduz Maçã caramelada.
Adílio, em busca das projeções da infância, nos obriga a repensar a construção da memória e se em nossas estórias existiu algum dia – ou existirá – a História, ou se não passam todas de interpretações, passíveis de cair nas peças em que nos prega a memória, tão esquecida e tão passível de criatividade espontânea, recriando-se. Seria por isso menos válida?
Greta personifica nosso mal-estar contemporâneo, nossa vertigem de possibilidades, a eterna indagação inútil sobre o caminho que não seguimos, as escolhas que não fizemos e a ansiedade que emerge de sua irrealização material, porém acompanhada de sua existência vívida em nossas projeções do que seriam memórias de um fato irrealizado. Reflexo e modelo do que passamos todos nós, homens e mulheres pós-modernos.
Eusébio amarra os dois extremos, o arrependimento e a insaciedade, a projeção e a nostalgia, em um personagem ciente de que “sem registrar os momentos da vida, o passado fica mais difícil de lembrar”, mas tampouco caindo na tentação de acreditar que “porque existe não quer dizer que é eterno”. E, acima de tudo, prezando e pregando o poder da coincidência, “a única coisa em que [conseguiu] acreditar e entender como possível”, “algo revelador das oportunidades que estão em nossa volta”, pois, justamente por “parecer acasos […], revelam um mundo desconhecido que, no entanto, não estava perdido, muito menos era inexistente”.
A chave
Tenho para mim que a chave está em Zaldok. O personagem que nunca sabemos ao certo se existiu, e muito menos quem foi, é uma pessoa distinta na memória de cada um, às vezes mais que um para uma mesma pessoa. Zaldok, personagem associado a valores mágicos de nossa infância, não envelheceu, não morreu, e tem acesso ao lugar onde nossa entrada não é permitida: o futuro.
Se para Eusébio “depois daquela maçã caramelada, tudo foi sorte na vida”, o autor nos diz também que, sim, ele, como nós, entende e sente a angústia da escolha, o medo do esquecimento, a preocupação com a memória no futuro, mas, acima disso tudo, está nos dizendo, nas palavras de Eusébio, que “[aceitemos] as coincidências”, que façamos do passado uma criação dinâmica no presente e uma reatualização no futuro, que deixemos as recordações museológicas de lado, pois não existe nossa História oficial. Seu (meu) passado está tão em transformação quanto o futuro, e aprisioná-lo no arquivo é privá-lo de vida, é assassiná-lo. A maçã caramelada é o presente de Eusébio a Adílio e Greta, é o presente de André Resende a nós.

http://diplo.org.br/2009-03,a2825

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