domingo, 7 de dezembro de 2008

Juro! [e minto quando juro], mas desta vez é de verdade. Eu estava me de-sa-bi-to-lan-do dos excessos de psicologismos, dando um grito de fuga por assuntos mais prazerosos. Fuçando, é fuçando mesmo, na internet por alguns sites aí de umas tais revistas 'cults', não a cult mesmo, mas a bravo! [pode rir!], e encontrei alguns blogs de escritores muito interessantes. Estava ainda numas inquietações quanto a escrita, escrever o quê, escrever pra quem, ou sobre quem se escreve. O texto que encontrei, um conto, de um escritor português chamado José Luis Peixoto caiu como uma luva [expressão mais antiga, né?!...rs..] sobre estes pensamentos. Lembrou-me, alguns fragmentos e tais que li, o gaúcho Caio F. Abreu, embora menos característico, devido a erótica que Caio insere na própria escrita, não no tema, não só no tema, mas a escrita de Caio me parece erótica. Me lembrei de Caio devido a escrita de ambos ser fluída e 'escorrer'. Dentre os textos que li, gostei muito de um em especial e posto abaixo. Gostei tanto e quis dividir que comecei a dizê-lo a amigos que estavam online e a outros ainda enviei por e-mails.
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Texto sobre mim [José Luis Peixoto]

- Eu entendo bem que tenhas de escrever sobre alguma coisa mas, por favor, não escrevas sobre mim.
- Porquê?
- Porque prefiro dissolver-me na história do mundo. Um grito que chega ao silêncio, percebes? Um grito que chega ao esquecimento. Quem me conhece, conhece-me. Os outros não existem. Assim, se escreves sobre mim, os outros começam a acreditar que me conhecem também, o que é mentira. No fundo, não quero que escrevas sobre mim porque não quero que pactues com uma mentira.
- Só por isso?
- Não, claro que não. Ser o objecto da tua escrita não é como ser modelo de um quadro, não é como deixar que captes a minha imagem, não é passar algumas horas imóvel e já está. Ser o objecto da tua escrita é ter a minha biologia alterada, é sentir um ligeiro enjoo, um mau gosto na boca, como se tivesse acabado de acordar e tivesse bebido vodka na noite anterior. Sempre assim, durante dias, durante meses, anos, durante a vida toda, como se tivesse acabado de acordar e tivesse bebido vodka na noite anterior.
- Compreendo, mas não concordo.
- Não precisas concordar, basta que compreendas. E respeites.
- Sempre te respeitei.
- Não disse o contrário.
- Ah.
- Olha, escreve aquela citação do Wittgenstein.
- Não me digas o que devo escrever.
- Se escreveres sobre mim, estou, de certa forma, a dizer-te o que deves escrever. Ao ser como sou, determino as palavras que vais utilizar. Só poderás usar as palavras que me dizem. Ficarás privado de usar um grande número de palavras que não fazem parte de mim, nem de nada que sejam os meus movimentos, nem de nada que eu toque com a minha acção ou sequer com um pequeno resto da minha identidade. Essas palavras, signos, só poderão ser usadas se não tiveres qualquer compromisso com a verdade ou se fores incompetente.
- Para ti, tudo é sempre muito simples.
- E é simples, é mesmo simples. Se não tiveres qualquer compromisso com a verdade, não estarás a escrever sobre mim. Mesmo que acredites que estás a escrever sobre mim poderás estar a escrever sobre, por exemplo, um candeeiro.
- Mas o que é a verdade?
- A verdade é o meu cu. Porque é que fazes perguntas idiotas?
- Desculpa. Continua.
- Continuando, se fores incompetente, não conseguirás escrever sobre mim. Serás como uma criança a quem pedem para desenhar a mãe. A própria criança se apercebe de que aqueles riscos não são a sua mãe: os lábios dela não são um risco, o nariz dela não é um risco, os olhos dela não são dois pontinhos cegos. Então, a criança culpa-se a si própria e julga-se incompetente, não percebendo que a sua mãe, aquilo que para ela é a sua mãe, é impossível de desenhar.
- Então mesmo que eu queira, não posso escrever sobre ti, não consigo, é isso?
- Não. Não foi isso que eu disse. Se fosse assim, não te pedia para não o fazeres. Deixava-te andar, chamava-te passarinho e deixava-te andar.
- Passarinho?
- Ou pardal. Olha, porque é que não usas aquela citação do Wittgenstein?
- Qual citação?
- Aquela que tens na porta do frigorífico.
- Ah.
- Se começares com uma citação, ainda por cima do Wittgenstein, verás que é como se já estivesses meio trabalho feito. Os leitores vão considerar que tens um alto nível intelectual e vão querer associar-se a ti, vão querer dizer que já te leram porque vão estar convencidos de que, desse modo, também eles demonstram um alto nível intelectual. Na realidade, nem é necessário que cites o Wittgenstein, basta que refiras o seu nome. Assim: Wittgenstein. É claro que, mais tarde, começarão também a apenas referir o teu nome. Muito poucos te lerão realmente, mas esses poucos serão aqueles que importam: professores universitários, críticos, júris de prémios literários. Mas o teu nome será referido. É isso que importa, não é?
- Sim, é isso que importa.
- Como vês, não há motivo para escreveres sobre mim.
- Enganas-te. Há motivos fortes para escrever sobre ti.
- Há?
- Há.
- Há?
- Há.
- Quais?
- O primeiro motivo é o amor.
- Piegas. Não tens nada melhor do que esse sentimentalismo bàsico?
- O segundo motivo é que estou grávido de ti.
- Como aconteceu isso? Não tivemos nenhum contacto a esse nível e, além do mais, que eu saiba, os homens não engravidam.
- Se a lógica explicasse tudo, a felicidade poderia ser calculada. A lógica é sempre o mais fácil, é sempre o caminho mais simples. Infelizmente, o mundo não se compadece com essas invenções.
- Mas o que há para além da lógica?
- Há o teu medo, toda a extensão do teu medo. E há muito mais. Esse também é um dos motivos pelos quais quero escrever sobre ti.
- Explica.
- Como tentaste dizer quando falaste sobre o compromisso com a verdade e a incompetência, escrever sobre ti será sempre escrever sobre mim. Definir-te implica, muito antes, definir-me.
- Egocêntrico.
- Desculpa, não ouvi. Podes repetir?
- Egocêntrico.
- Chama-me o que quiseres, piegas, egocêntrico, tanto me faz. O mundo não se detém perante os teus medos e as tuas inseguranças. Vou escrever sobre ti porque és o único assunto.
- E, no fundo, vais sempre escrever sobre ti, não é?
- Sim, no fundo, vou sempre escrever sobre mim.

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