quarta-feira, 28 de outubro de 2009


Que não se despeça desta forma... e que jamais baste algo assim. São as luzes. São sombras... é tudo o mesmo. Já existiu um dia de alegria. Talvez dois até. Mas não três. Nunca passou disso... dois dias. Se são muitos, ou suficientes, este dois dias, eu não sei. Porque também nunca me preocupei. Não é algo de que costume me ocupar. Algumas reportagens de jornal, algumas imagens nos altdoors... nada muito sério. Por vezes uma espiada pela janela durante a madrugada, mas não passa disto. Se você soubesse. Se pudesse sentir. Te rasgaria todo, inteiro. É mesmo cômico como estas coisas me parecem. Sempre aquilo que mais nos faz sentido... parece tão infantil. Eu sinto também. E não é porque não me escutas que não peço. Às vezes nem eu me ouço. Mas nunca tente usar este sentido pra isto: audição. O que é audível afinal? E quando calo? Assim também não vais me ouvir. Não importa! E se meu grito não fosse mudo, ainda assim, não te deixaria escutar. Você insiste! Eu já pedi que parasse, que me deixasse aqui. Eu estou pedindo. Porque é isto quando se sente assim, esta coisa que não se nomeia. Que se perde ao tentar prender num nome, e já não é o que se tentou nomear.
O cinza dos olhares atravessam a rua. Mesmo que os olhos dela não estejam mirando os dele. Ela admira um vestido pela vitrine de uma loja qualquer. Ele a observa sem saber o que ela olha, porque não vê nada além dela. Era um vestido verde com flores claras - daquela cor entre creme e amarelo clarinho. O vestido era horrível. Ela com certeza pareceria uma dona-de-casa se usasse um vestido daquele. E o que intrigava era o seu ritual matinal de observar aquela vitrine. Todas as manhãs - por volta das onze e meia -, ela surge no final da rua, que termina numa padaria, e desce a ladeira até aquela loja. Permanece alguns cinco minutos do lado de fora... compra um café na barraca de um senhor português que sempre está ao lado, travam uma conversa rápida - também de alguns cinco minutos -, e logo parte, mas não antes de olhar mais duas ou três vezes para a vitrine. As conversas entre a moça que olha o vestido e o senhor português já devem ter ultrapassado as superficialidades. É uma rotinha que se sucede naturalmente. Eu quase posso escutar o que eles falam... em minha imaginação.

Certo dia resolvi segui-la. Não entendo porquê fiz isto. Mas o fato é que o fiz. Ela trabalha na padaria da esquina onde termina a rua, e por isto sempre surge daquela direção. Olha muito pra uma foto que traz no bolso da calça - e do avental enquanto trabalha. São curiosas as fotografias. Por que tanta pretensão em guardar um momento? "Torná-lo eterno"... que piada. Não se preserva nada assim. Somente nostalgias. Se você gosta de nostalgias, então, que guarde suas fotografias empoeiradas numa gaveta. E, de quando em quando, queira derramar algumas lágrimas por elas. É uma escolha também. Deixar um pouco de viver pra se sentir como se, antigamente, houvesse vivido. E sentir toda a melancolia que isto guarda. Mas não vou escrever um tratado sobre fotografias. É verdade que também encarcero as minhas sob a roupa limpa, em gavetas fundas e baixas. Vê? Quanta contradição no humano!
A padaria onde a moça que olha o vestido trabalha serve um capuccino gelado regado à canela. Em algumas manhãs - as que não me encontro demasiado cansado -, costumo subir a rua para conseguir um. Àquele olhar, que a segue e somente enxerga ela, é o meu. Não é que somente veja sua imagem. Também vejo o senhor português e tantas outras coisas e pessoas. Mas todos se relacionam a ela. O que digo é que a percebo. Sua meia-idade. Eu sei o que está lhe intrigando agora... eu a chamo ‘moça’. Sim. É uma moça. Uma moça, pois... não chega a ser senhora. É uma moça-senhora de meia-idade. Ou chame-a como queira, realmente muito pouco me importa. Eu a chamo moça. O rosto dela. Há tanto que o observo. Há tanto que meu próprio rosto se perdeu em minhas lembranças. Nesta idade em que 2, 5 ou 7 anos já não importam tanto. E as expressões já estão todas no rosto. Presentes em cor. Nos riscos profundos que se formam sobre a pele. Mas ela... ela tem um rosto lindo. Iluminado. Se percebe que às vezes fica cansada. E talvez já não tenha a disposição e energia de alguns anos atrás. Mas tão pouco isto lhe tira o brilho, a suavidade. Perde-se tanto com a idade - é através duma xícara de chá que me olho. São olhos cansados estes meus. Vejo qualquer coisa de inocente nos olhos dela. Um olhar perdido, talvez.

Posso contar-te sua estória – a estória que penso ser dela, que criei pra que fosse sua. A estória é esta: a moça vem de uma família complicada, mas afetuosa. Formou-se. E lecionou (ela me parece professora) durante anos em escolas da sua cidade. Casou-se, ou não. Mas... isto deve importar. Creio que se casou. E deve ter tido filhos. A foto que traz junto a si deve ser um filho seu. Uma filha – é a fotografia de uma mulher. Jovem, e muito bonita. E tem os mesmos olhos que os dela. Quando ela olha a vitrine, seus olhos se perdem. No que ela deve pensar? Hoje, seu olhar, lindo e iluminado, deve se perder por seus filhos, por sua estória, seus amores... Penso nos amores que não tive, paixões que não vivi. Bobagem. Não hei de me queixar do que não fiz. Vivi o suficiente, a dose certa do que quis. Do que me permiti. Sempre se vive o bastante.
Esta moça nunca me viu. Claro que já me viu. Mas nunca me percebeu. Tenho inveja de sua juventude de meia-idade. De seu viver pelas ruas, seu não espiar um estranho pela janela. Os reflexos por vidros, vidraças... insistem em sempre dizer o quanto o tempo passou. Intrometidos, diria eu – e quem foi que lhes perguntou?! São onze e meia da manhã. E hoje, agora, não olho pela janela. Observo os livros empoeirados na estante. Livros de quando se acredita em algo, em fazer algo, e crê que se é eterno. Os jovens não acreditam na morte. Nem no tempo.
A verdadeira estória da moça, a estória que eu não sei. Não a que inventei, mas a que eu não sei, mas vou contar. Dela se diz muito pouco... sem casamento, sem filhos. Ela não leciona, faz café. Trabalha numa padaria. Segue sua rotina. Dorme cedo. Mas aos fins de semana ainda se concentra em tentar sair com alguns amigos que também se mantém solteiros. Não, ela não se sente sozinha a caça de companhia. Mas sente a solidão. Nunca quis filhos, nem casamento, nem nada. Talvez seja isto o que mais lhe sinta. Que por nunca querer, nunca tenha buscado. E agora não tenha o que nunca disse querer. Ela é vaidosa ainda. Vejo seus lábios, sempre estão pintados: vermelho. Rosa nos dias em que seus olhos estão mais cansados e se detém por mais tempo observando a vitrine. A moça, moça-senhora, ela traz consigo uma foto sua. Sim. Não teve filha para carregá-la consigo. Ela carrega sua foto. A moça-senhora carrega sua foto de quando ainda era uma moça. Pára de frente a vitrine da loja com o vestido da cor entre creme e amarelinho de dona-de-casa todos os dias. E fica a olhar... Ela observa sua própria expressão. Havia se livrado de todos os espelhos de sua casa. Mas não resistia a ver-se refletida no vidro sempre limpo daquela loja. Ela via suas expressões. Rugas. Velhas expressões cansadas. Lembram-lhe que o tempo ainda passa. E o vestido nem devia ser o mesmo todos os dias. Ela nunca olhou aquela vitrine.

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