quinta-feira, 16 de julho de 2009

Numa valsa louca, presa entre a epopéia delirante que se desloca entre um cabelo colorido e a porta desta sala. Vagamente o ar se extingue enquanto uma tontura toma conta da minha cabeça – no lugar dos pensamentos que me traziam você... fecho os olhos. Nietzsche disse: há no mundo um único caminho que ninguém, exceto tu, pode trilhar. Mas que caminho? O caminho não existe. O que existe é o não-caminho. É nada.
Ele andava por entre carros num estacionamento de luzes acesas. Sabia bem porquê estava ali. E por isto ainda um pouco mais permaneceria. No passado, não muito distante, ele havia se sentido vivo. Havia sofrido. E por isto sentiu-se vivo, pois a dor nos traz a certeza precisa de que se vive e a dimensão de seu corpo, não de seu corpo físico, mas de seu corpo que sofre, aonde dói. Mas isto nunca admitira pra ninguém. Teria sequer contado pra alguém? Mantinha esta dor guardada consigo como quem guarda diamantes, sem dizê-los. Tinha aprendido a deixá-la ali, enquanto saia com os amigos, falava com seu chefe, cumpria com sua rotina... esta dor permanecia dentro de si; agora em silêncio. Aprendeu a acompanhá-lo com certa reverência e um silêncio respeitável. Andou ainda algumas horas entre os carros, cerca de duas ou três, até que o vigia noturno o interrompeu em seu silêncio – apagara as luzes que lhe iluminavam o olhar baixo e seu lento andar que pisava pelas poças de óleo e gasolina e lhe molhavam os sapatos. Quis sentar-se, não havia onde. Decidiu voltar a seu apartamento num bairro periférico. No caminho passa por prostitutas e bêbados, ruas com garrafas quebradas, latas jogadas pelas calçadas, bueiros abertos e neste caos, neste cenário sujo, uma peça de teatro, uma cena onde ele... ator tão coadjuvante quanto aquelas prostitutas, aqueles bêbados, e mesmo aquelas latas vazias pelas calçadas. Ele se sentia tão bem, envolvido. Seu habitat natural ('natural?'). Sentiu que fazia parte daquilo. Tão perfeitamente e mais do que se sentira a qualquer dia de sua rotina que não só se repetia, como se sobrepunha e se anulava, o que acabava por a renovar, torná-la não tão monótona.
Mudou-se para este bairro a pouco mais de uma semana. Mas seu apartamento não tinha aquele cheiro do que é novo, aquele cheiro de algo que ainda não é seu. Tinha outro cheiro. Cheiro de mato. Aquele cheiro que se sente quando a gente arranca uma folha duma árvore qualquer e a cheira (ou seria outro o cheiro?). A sala era também o quarto. Ao lado direito uma pequena porta dava acesso ao banheiro. À esquerda ficava um cômodo ainda menor que a sala-quarto, e pouco maior que o banheiro, a cozinha. A única janela via-se logo ao se abrir a porta e dava para um clube de jogos de cartas clandestino. Ele entrou lá uma única vez. O cheiro de urina, cigarros e álcool fê-lo querer sair em poucos minutos. Possuía um estômago sensível. Era um homem sensível, de gostos sutis. Gostava da sensação daquela brisa entre o entardecer e o anoitecer passando pelo rosto; gostava de uvas – das roxas pequenas, não das itália ou rubi que achava-as grandes e exageradas e impossíveis de serem colocadas duma só vez dentro da boca. Estes todos eram quase segredos seus. É daquelas coisas que ninguém diz e poucos percebem. Não as falava. Tinha aquela discrição de quem acredita que estas coisas não interessam a ninguém – e a quem interessam realmente? Achou melhor deitar-se, mesmo sabendo que não dormiria. Antes ainda folheou alguns livros que havia comprado em alguns sebos, os quais ainda não lera... nem sabia quando teria tempo para isto. O trabalho e uma vida social exigem tempo. Tudo bem, o trabalho exige muito tempo. Deitou-se enfim. E aquela foto. Ela ainda estava ali. Tentara livrar-se dela, guardá-la no fundo de alguma caixa com velhas fotografias, papéis antigos e coisas que não se sabe porque se guarda, mas ela sempre voltava. Horas após tê-la escondido, ela voltava. Era necessário que voltasse. Ele tinha medo de que acabasse por não voltar um dia. E de alguma forma estranha, estes retornos o tranqüilizavam de sua volta. Ele temia e sabia que não precisava temer... sabia? Ele temia sempre. Quando esta volta demorava mais do que o habitual ele mesmo cuidava para que ela acontecesse – por este medo de não acontecer.
Não dormira. Eram três e cinqüenta da madrugada de uma quinta-feira e ele ainda não dormira. Teria de levantar-se para trabalhar em 2 horas. O jeito era tomar um café forte pela manhã. Decidiu ir ao clube de jogos de cartas, lugar de que nem gostava. Estas coisas que se decide fazer quando a angústia nos engole e não conseguimos afastá-la nem pensar noutra coisa melhor pra fazer. Abriu a janela e viu do outro lado da rua o portão que escondia o clube clandestino. Caminhou até seu guarda-roupa para pegar algo para vestir-se. Mudou de idéia. Não queria vestir-se, nem mesmo queria ir até o clube. Desceu as escadas de seu prédio que o conduziam à rua. Antes mesmo que atravessasse a rua ouviu B.B. King tocando meio abafado. O segurança do local o conhecia, isto o liberou de precisar – alguém precisava? – duma senha para entrar no clube. Sentiu de imediato aquele cheiro composto de urina, cigarros e álcool, mas não tinha mesmo nada melhor que fazer ou para onde ir. Disto, não resolveu ficar, só não tinha uma outra opção. Pensava na fotografia. Sempre pensava na fotografia, estava sempre pensando nela. As vezes se distraia nas conversas com algum amigo, ou com algum problema profissional. Mas era só. No restante do tempo pensava sempre na mesma coisa. Nela, a fotografia.
Sentia que a qualquer hora a cortina deveria se levantar e os aplausos pela bela peça que encenara lhe seriam dados. A peça amargurada que encenara. Triste. Uma peça cheia de angústia, mas não era amargurada. Talvez um pouco azeda. Mas só um pouco. Azeda como a careta que se faz quando se chupa um limão. Não azeda como os velhos que furam as bolas que caem em seu quintal. O conhaque que pedira chegou. O rapaz, de aparentemente seus vinte e poucos anos, que lhe serviu olhou-o fundo nos olhos enquanto colocava seu copo de dose sobre o guardanapo de papel que estendeu em cima do balcão para isto. B.B. King que cantava Days of Old quando ele entrou no bar, agora canta Three O´Clock Blues. Àquela... fotografia. Era dedicada a ela que cantava. O que King teria pensado dela? Qual seria a expressão de seu rosto ao vê-la? Talvez seu blues se tornasse mais amargo... amargo não, triste, angustiante. Isto. Era angustiante. Sempre achou que o blues tinha uma dose de angústia que lhe enobrecia a dor. Era esta imagem, a fotografia, a portadora de toda sua linda tristeza. A esta hora ele não combinava com aquele cenário, não combinava com o clube clandestino de cartas, nem com B.B. King tocando blues. Realmente, em nada combinava com blues. Talvez sua barba por fazer e aquele aspecto distinto de quem vai se aproximando dos quarenta anos de idade. Aquela maturidade que parece inerente a quem quer que tenha mais de vinte e cinco anos... não, mais de trinta e cinco pelo menos. Mas era só. De resto, em nada se enquadrava naquele lugar.
Uma gestalt (ou objeto de uma) – não entendo de psicologismos – era isto o que a fotografia era pra ele. Como quando culpamos uma única coisa por tudo o que nos acontece ao redor. Era assim que a fotografia aparecia pra ele. Ela era seu foco. Sua única responsável. Sua culpada pela sua dor. Dor que ele já amava. E amava porque mesmo doendo, era dor dela, a dor vinda dela. Doía pra ela... então sentia pra ela. Quando é que esta noite iria acabar? Não se assustem. Esta pergunta é feita todas as noites. Faz parte desta estória. Faz parte desta agonia, ela precisa disto. Já nem saberia viver sem ela. Mas esta noite precisava e iria acabar, como as outras (?). O dia sempre amanhece, não? Lembra-se dum dia quando criança, não sabia porque esta imagem vinha-lhe a mente neste momento. Mas lembra-se de estar andando de bicicleta, e de um amigo lhe dizendo pra não olhar... que não olhasse. Lembra-se ainda vagamente de ter olhado. Mas olhado o quê? Quantas perguntas! Isto ele já não lembrava. Tinha mantido este costume de não seguir os conselhos dos outros. Talvez fosse por isto que sofresse tanto, sempre era necessária a decepção para que entendesse. Quando era ainda um adolescente uma guerra civil estourou em seu país. Num determinado episódio – deste jamais esqueceria – sua mãe lhe pedia (lhe ordenava) que não olhasse, que não virasse seus olhos. Viu um fuzilamento a queima-roupa, tão próximo que ainda hoje é com dificuldade que acredita que realmente o presenciou. Tomou seu conhaque num só gole.
Um dia, percebeu que havia passado toda a vida assim, como nesta noite. Ia a lugares aos quais não queria ir, por motivos que desconhecia. Tudo simplesmente acontecia. E ele nada tinha haver com isso. Seus sentidos já não lhe diziam. Mas a dor... a agonia. É o que ainda está. Sempre estará! Sempre isto. O dia amanhece, começa a clarear – o dia sempre amanhece! – Ele vai passar mais um dia pensando nela. As fotos nos jornais, ele não as vê, porque em todas enxerga ela. Quando anoitecer voltará ao estacionamento. E andará entre os carros molhando os sapatos em gasolina até que as luzes se apaguem. Ou irá a outro lugar qualquer também sem importância. Ele não vê o lugar, não vê as pessoas, só aquela imagem na fotografia lhe vêm aos olhos. E igualmente, tão insignificante, cairá a noite. Atravessará a rua até o clube de cartas depois de olhar pela janela no meio da madrugada. Ou também a qualquer outro lugar tão indiferente. É o seu não-caminho, seu eterno retorno renovado.
Suas mãos transpiram quando pensa nela. Ele gosta de olhar suas próprias mãos. E ele gosta da luz. Pois a luz lhe lembra ela. E aqueles vaga-lumes e siriris da sua infância. Lembrava de quando brincava na rua e o farol de algum carro que interrompia a caçada aos siriris iluminava a nuvem destes bichinhos que voavam pelo meio da rua. A noite é tão mais romântica... e tão solitária. Talvez por isto vague a noite. Sozinho. A noite, no escuro, é sua metáfora. É seu contradizer a ela. É como lhe diz que não a quer... mas é um dizer que deseja. O querer de alguém que não sabe o que quer, porque nunca sentiu sua presença. Nunca possuiu em seu corpo esta marca. Ele não pensava em saídas. Conformava-se em sentir sua falta. Estava conformado com a certeza de que sempre seria assim. Tinha aquela certeza inebriante. Aquela de uma embriaguez que nos faz duvidar, se é real. Afundava-se na sua inexpressão. Evitava olhar-se ao espelho. Pois isto lhe trazia a ausência dela. E aquela fotografia... era um recorte. Um recorte de revista. Um sorriso. Algo que ele nunca teve, mas quanto medo tinha de perdê-lo...

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